Pitacos #12 – Noé: cinema, religião e evolucionismo

.oé é um filme que pode ser analisado sob diversos ângulos: como um blockbuster de ação e ficção, como um filme bíblico e religioso ou como um filme sobre a complexa relação do homem com a natureza e a ciência.

Uma coisa você já deve ter percebido: Nós, do Playstorm, amamos os nossos leitores! Desta maneira, saiba que se você está interessado em uma análise crítica do filme, você vai encontrar respostas nesse artigo. Se você, por outro lado, é curioso com relação a como a história é abordada do ponto de vista “bíblico/religioso”, você terá também respostas. Se você é ateu ou um entusiasta em ciências e cosmologia, saiba que também pensamos em você!

Um mundo antes do dilúvio

Caso você não saiba, o dilúvio é uma história que não está restrita apenas à bíblia. As civilizações grega, suméria, hindu, maia, asteca e inca também possuem suas próprias versões da grande chuva enviada pelos deuses.

No filme, o mundo onde vive Noé (Russell Crowe) é diferente de tudo que conhecemos. Não vemos praias, grandes campos ou florestas. É um mundo cujo visual é bastante inóspito e cinzento, no melhor estilo Mordor.

Por outro lado, é divertido notar como o diretor Darren Aronofsky imaginou alguns elementos que “não existem” mais na natureza: animais pré-históricos, pedras que entram em combustão, ervas com superpoderes (ops, essa ainda existe, hehehe), incenso do sono e até uma relíquia bem apropriada para a época (não vou estragar a surpresa).

Em termos de sociedade, a coisa é bastante polarizada: de um lado, os descendentes naturebas de Set: Noé, sua esposa (Jennifer Connelly), seus três filhos e seu avô, Matusalém (Anthony Hopkins). Do outro lado, os carnívoros, numerosos e selvagens descendentes de Caim, liderados por Tubal-cain (Ray Winstone). Temos ainda uma terceira via – que vai ser novidade para muitos – os Guardiões, criaturas de pedra com alma de anjo. Ei, que  * é essa? Na abordagem deste artigo sobre os aspectos religiosos do filme, você vai entender.

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I have a dream

O personagem principal é um cara atormentado por pesadelos e aflito com a selvageria que assola o mundo em que ele vive. E é durante um desses sonhos que ele se vê comissionado pelo “Criador” (a maneira com a qual Deus é chamado no filme) a construir uma arca e salvar a criação de um dilúvio que destruiria toda a humanidade. Criação esta que, na visão de Noé, não inclui a raça humana. Noé quer salvar apenas os animais. Nada de salvar a família, portanto.

O filme adquire tons dramáticos quando Tubal, que até então tratava os boatos sobre a Arca de Noé como loucura, se dá conta que há algo real naquilo tudo. Ele resolve convocar o seu povo e montar acampamento nos arredores da arca, preparando e municiando um exército de bárbaros para tomar a embarcação e salvar o máximo de pessoas que puder.

Os conflitos a partir daqui se evidenciam. Temos em Tubal o descendente mais cruel e carnívoro de Caim, em Matusalém aquele que conserva os valores espirituais passados pela descendência de Adão e em Noé um fundamentalista disposto a obedecer as ordens do Criador mesmo que isto custe a integridade de sua família.

E é justamente no personagem de Noé que vemos o filme sair um pouco do rumo: em nenhum momento entendemos direito que relação Noé tem com Deus. É tudo muito subjetivo. Ora, Noé recebeu de fato aquela ordem ou ele intuiu que deveria construir a Arca? Em que momento o Criador realmente deixou claro que o objetivo era apenas preservar os animais?

Herói ou anti-herói?

O fato é que Noé parece estar entorpecido com sua grande tarefa e, por conta disso, acaba misturando um pouco de suas crenças pessoais com o que lhe foi confiado. Essa confusão vivida por Noé parece ter sido vivida também pelos roteiristas. Noé é um herói ou um anti-herói? Se ele tinha uma relação com Deus, como entender os momentos onde ele parece ser mais cruel do que o antagonista Tubal-cain? É uma dualidade que fica mal resolvida até subirem os créditos.

O único personagem que parece compreender realmente o sentido e a “vontade” de Deus é Matusalém, que no filme é retratado como uma espécie de monge e guru espiritual, ainda em total conexão com a criação original e com a realidade espiritual (evidenciada também pela existência dos Guardiões) por detrás do plano físico.

Uma curiosidade: o filme tem referências a outra história bíblica muito conhecida, a história do pai de todos, Abraão.  Noé é uma espécie de Abraão antes de Abraão, e vários elementos da história do patriarca estão presentes no filme. Divirta-se ao identificar quais, eu não vou dizer!

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Zoológico 3D

Para entusiastas em efeitos especiais, uma boa notícia: o filme é extremamente competente nesse sentido. Ajuda muito o fato de que a arca construída para as filmagens é real e não uma animação computadorizada. E ela é grande pacas!

 As cenas do dilúvio são excelentes, bem com a entrada dos animais na arca. As retrospectivas envolvendo a criação também são espetaculares.

Sobre a versão 3D, é o que todo mundo diz: vai depender do seu gosto pessoal. Eu, particularmente, detesto. Se você não se importa em ver filmes em 3D, mesmo com a gritante perda de brilho e outros problemas que acompanham a tecnologia, vai ficar bem satisfeito. As brincadeiras do 3D são interessantes: é pena voando aqui, é sapo pulando ali; aquela coisa de sempre. De qualquer maneira, não considero a versão 3D indispensável.

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Pitaco final (sobre o filme)

Se você gosta de blockbusters, não deve deixar de conferir Noé no cinema. O filme entrega o que promete com bastante qualidade: cenas de ação de tirar o fôlego permeiam a projeção. O filme é bastante competente ao retratar um mundo antediluviano e ganha em sensibilidade ao mostrar flashbacks do Éden, da queda do homem, da criação e, sobretudo, ao deixar claro o quanto o homem pode ser destrutivo quando o assunto é natureza. Al Gore pira!

Agora, se você é um entusiasta de filmes bíblicos, um religioso fervoroso, um ateu ou não tem nada melhor pra fazer, eu recomendo que leia a próxima sessão deste artigo. Fique avisado de que pode haver spoilers, ok?

Sou religioso. Vou gostar de Noé?

“Ora, naqueles dias estavam os Nefilins na terra, e também depois, quando os filhos de Deus coabitaram com as filhas dos homens, as quais lhe deram filhos. Os Nefilins eram os valentes da antiguidade.” Gênesis 6:4

Talvez esse seja o texto mais intrigante de toda bíblia, pois a partir dele podemos deduzir que o autor do livro relata que, no mundo pré-dilúvio, a terra estava povoada de seres fantásticos, híbridos de “filhos de Deus” (Anjos?) e filhas dos homens, humanas. Esses seres híbridos são chamados de Nefilins, e esta não é a única referência bíblica deles. Quando a bíblia fala em gigantes, sempre há uma conexão com os tais Nefilins.

Ora, como então a produção do filme, lendo esse trecho, chegou à conclusão de que os tais gigantes eram as criaturas de pedra presentes no filme?

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Simples: a fonte principal da consulta foi o livro de Enoque, e não o Gênesis. E que raios é o livro de Enoque?

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O livro de Enoque é um escrito “paralelo” ao Gênesis, que retrata o período entre a criação, dá grande ênfase na história de Noé e tem até uns pitacos apocalípticos. Enoque é um livro “apócrifo”. Ou seja, foi escrito em época parecida com os demais livros da bíblia, mas ficou de fora da “seleção” dos livros que viriam a compor a mesma. O curioso é que, mesmo estando de fora da seleção, o livro é citado na bíblia.

Alguns dos conceitos “exclusivos” do livro foram citados por Jesus. Um exemplo é o da “morada dos mortos”, presente na parábola do Rico e Lázaro e também no capítulo 22 do Livro de Enoque. Até mesmo quando Jesus fala da sociedade “assim como nos dias de Noé”, podemos aferir que este faz uma referência ao livro de Enoque. Mas nenhuma citação é mais clara do que a presente em Judas 14:

“A estes também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: eis que venho com miríades de seus anjos”.

Esta citação foi tirada diretamente do capítulo 58 do livro de Enoque.

Portanto, se você é religioso, não espere um filme nos moldes dos “Dez Mandamentos”. Noé é um filme baseado mais no Livro de Enoque do que na Bíblia. Mas antes de ter uma crise, é importante saber que o livro de Enoque era um livro conhecido pelos “escritores” da bíblia. Todos os personagens de “fantasia”, os Guardiões de pedra com alma de anjo estão lá. Os autores da bíblia conheciam essa história. É sua chance de conhecer outra visão sobre o assunto. Além disso, não há como não se deslumbrar com as cenas do dilúvio, dos animais entrando na arca, com a criação. Baixe sua guarda e assista. É o meu conselho pra você, religioso. Mas sem mimimi, por favor!

Sou ateu / evolucionista, vou gostar do filme?

O filme não deixa espaço para dúvidas: Deus existe. Talvez isso desanime um pouco os ateus mais fervorosos. Mas é nítida a intenção do diretor Darren Aronofski (que é ateu, segundo dizem) de não impor a imagem de Deus como o Deus judaico-cristão.

O Criador do filme Noé não é um Deus pessoal. Ele não “fala” com Noé, Ele não “aparece” pra Noé. O mundo espiritual está presente, os anjos enclausurados em rochas estão presentes, mas Deus não se faz visível ou inteligível. Ele não é um Senhor de barbas brancas.

Muito pelo contrário: você pode interpretar Deus como energia ou simplesmente como uma entidade extraterrestre. Existe margem para todo tipo de interpretação.

“Haja luz”

A cena da criação é a maior evidência disto. Quando Noé reconta a história do Gênesis, a narração é ilustrada com imagens que vão fazer os evolucionistas derramarem lágrimas (ou ficarem de mimimi): Noé diz “Haja luz” e vemos o Big Bang. Noé diz “E criou Deus os luzeiros para fazer distinção entre dia e noite” e vemos a evolução do cosmo. “E criou Deus as criaturas que rastejam sobre a terra” e vemos o modelo de evolução proposto por Darwin em lindas imagens. Seres unicelulares, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos. Tudo na ordem que você já conhece.

Quando o assunto é a criação do homem, o que vemos é um casal luminoso passeando pelo jardim. Extraterrestres ou seres puramente espirituais? Difícil dizer. Mas está tudo lá, evolução e criação numa tentativa de conciliação ao melhor estilo Design Inteligente.

ateu

Vale ainda salientar que os danos imprimidos pelo homem à natureza são outro grande pilar de sustentação do filme. A serenidade do vegetarianismo x a selvageria dos comedores de carne. A natureza imaculada x as ações assassinas do homem.

Caso você se incomode com um uma propaganda de igreja disfarçada de filme, pode ficar tranquilo. Este tipo de abordagem passa longe do filme.

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