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“Todas as coisas devem passar”
Ringo Starr já tinha saído dos Beatles uma vez. George também. Lennon vivia dizendo que queria sair. Mas foi Paul, na ocasião da entrevista coletiva do lançamento de seu primeiro disco solo, McCartney, quem decretou o fim dos Beatles. As meninas choraram, os rapazes ficaram tristonhos, Yoko Ono adorou, Ringo se sentiu desempregado, Paul se isolou na fazenda… e o George, o que fez? Pra ele ficou fácil: bastou abrir o baú de músicas rejeitadas pelos Beatles, gravar e lançar tudo de uma vez no álbum triplo “All Things Must Pass”. O disco é considerado por muitos (inclusive por este que vos escreve) como o melhor disco solo de um ex-beatle. É tanta música boa que não dá pra falar de cada uma.
Mas algumas merecem destaque:
• My Sweet Lord:
É a música mais conhecida da carreira solo de Harrison. Diz a lenda que Harrison “colou” no seu amigo Delaney Bramlett, líder do Delaney & Boney e lhe pediu que mostrasse como compor e tocar uma música gospel. Ele mostrou alguns acordes a Harrison e improvisações vocais. Harrison curtiu a ideia e ficou com os “aleluias” na cabeça. Pegou um violão e alternou entre “aleluias e Hare Krishnas” e assim nasceu My Sweet Lord, uma canção que reflete a preocupação constante de George com as questões da alma.
• What is Life:
Uma das músicas mais “pra cima” de George, composta quando ainda havia Beatles. Apesar de ter uma excelente levada pop, foi rejeitada pelos fab four.
• Awaiting for you all:
Uma das minhas prediletas, por criticar diretamente o lado comercial da religião. Harrison transmite através da letra a ideia de uma fé genuína, desprovida de complicações, crendices e templos. Quem diria que este é o discurso atual de alguns religiosos descolados, hein? Naquela época, deve ter soado como uma tremenda heresia.
• All things must pass:
Pois é meus amigos, todas as coisas passarão e vocês aí preocupados se vão de PS4 ou XOne? Essa reflexão está presente nesta outra obra-prima que, em sua versão original, é um pouco prejudicada pela. Prefiro muito mais as versões acústicas (out-takes) da música do que a versão final, que tem um exagero de metais e outros instrumentos desnecessários.
Só não dou uma nota dez para o disco “All Things must pass” porque não gosto do “Wall of Sound” do produtor Phill Spector. Várias das músicas do álbum têm um declínio de qualidade em razão do exagero de sobreposições e mais sobreposições, característica da porcaria que era essa “inovação” do produtor. Só não se instaurou uma tragédia completa porque George realmente mandou muito bem nas composições.
George Harrison, o primeiro Bono Vox da história
Em 1971, George Harrison sensibilizou-se com a situação de Bangladesh, da qual tomou conhecimento através do amigo e professor de cítara, Ravi Shankar (o pai da Norah Jones. É sério). Havia uma guerra civil em andamento – os bengalis queriam Bangladesh independente do Paquistão. Some-se à guerra fome, atrocidades, migração em massa de refugiados e um ciclone que assolou a região: a merda estava feita e George resolveu ajudar. Chamou toda a sua galera de astros do Rock para um show em Nova Iorque, cujos fundos arrecadados seriam destinados integralmente para o socorro dos pobres bengalis. Nascia assim o primeiro show beneficente da história do Rock. Os Beatles, naturalmente, não se reuniram por mimimi’s diversos:
John queria que a Yoko se apresentasse (ela não foi convidada) e Paul achou “cedo” para que os Beatles tocassem juntos de novo.
Problemas financeiros a parte, a atitude foi mundialmente reconhecida e é até hoje é a grande inspiração para os Live Aids e Live 8 da vida.
George e o mundo material
George nunca pareceu ser um cara que curtia ser uma “celebridade pop”. Tanto que da metade dos anos 70 pra frente, ele meio que se retirou da vida pública. Claro, não foi algo oficializado, mas as suas aparições eram um tanto quanto pontuais:
As corridas de Fórmula 1 (sua paixão), dois discos com os Travelling Wildburys (a banda que formou com amigos Jeff Lyne, Roy Orbinson, Tom Petty e Jim Keltner), uma turnê muito criticada (o coitado fez praticamente todos os shows numa rouquidão desgraçada), o projeto Beatles Anthology e o seu envolvimento com o grupo inglês de comédia Monty Python.
Uma das histórias mais legais – que deixa em evidência o total desapego de George com as coisas desse mundo – aconteceu durante a produção do filme “A vida de Brian”, do Monty Python. O filme, como todos sabem, é uma dura crítica ao cristianismo e sistemas religiosos em geral. Justamente por isso, teve o lançamento inviabilizado: todos os distribuidores disseram não ao filme. Quando Harrison soube disso, ele simplesmente pegou três milhões do bolso, montou uma distribuidora, a Handmade Films, e lançou o filme nos cinemas. O filme “A vida de Brian” é considerado um dos cem melhores filmes de todos os tempos. E só veio à luz graças ao desejo de George, que certa vez declarou que “fez isso simplesmente porque queria ver o filme”. Que ingresso caro, não?
I really wanna see you, Lord
George lutou contra o câncer e veio a falecer em 29 de novembro de 2001, aos 58 anos. O legado que ele nos deixa é o de um homem que teve tudo o que o dinheiro poderia comprar. Mas que nunca deixou de cuidar da alma. Sua música, sua obra e seu estilo de vida são parte desse ensinamento que o norteou desde os primeiros anos nos Beatles. Quando perguntado o que queria fazer após a morte, ele olhou para o céu. E, ao ver as lindas nuvens avermelhadas de um pôr do sol, respondeu “isto”.
Saudades, George!
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- Música
- 28 de fevereiro de 2014